O câncer e a polêmica da pílula
Atualmente, milhares de brasileiros compartilham a esperança de dias melhores. Tal frase se encaixaria muito bem em nosso cenário político, porém, neste caso, ela é aplicada a um mal muito… leia mais
Atualmente, milhares de brasileiros compartilham a esperança de dias melhores. Tal frase se encaixaria muito bem em nosso cenário político, porém, neste caso, ela é aplicada a um mal muito maior. Afinal, quase 600 mil pessoas serão diagnosticadas com câncer no Brasil ainda neste ano. Quem passa a fazer parte desta triste e alarmante estatística direta ou indiretamente (familiares, amigos etc) possui somente um objetivo em mente: a cura. E tudo que promete o alcance dessa meta vira prioridade imediata. Nada mais natural e compreensível. Porém, é preciso equilíbrio e bom senso, especialmente com o que possuímos de mais importante, que é a nossa própria vida.
Ultimamente, muito tem se comentado sobre uma nova promessa de cura: a pílula do câncer. E ela tem sido também alvo de uma discussão que, assim como a frase de abertura, abrange a política e a oncologia. Ainda desprovida de comprovação científica ampla e estudos de longo prazo em humanos e baseando-se apenas em resultados preliminares de atoxicidade, a pílula do câncer ganhou os jornais ao ter seu uso aprovado pela Câmara dos Deputados e, posteriormente, no Senado (sob o Projeto de Lei da Câmara 3/2016), além de receber a sanção da presidente Dilma, o que autoriza seu uso por pacientes diagnosticados com câncer.
Trata-se de uma clara interferência à função do órgão competente, neste caso, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, vinculada ao Ministério da Saúde), que ainda analisa e busca comprovação científica sobre o assunto. Endossada por entidades médicas como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), a Sociedade Brasileria de Cancerologia (SBC), e a Associação Médica Brasileira (AMB), a Anvisa divulgou recentemente uma nota que repudia a arbitrária decisão dos políticos.
A liberação final, recentemente aprovada pela sanção presidencial, já estava em destaque nas discussões e na imprensa durante as últimas semanas. Uma discórdia oriunda da impossibilidade de se atestar a eficiência da substância com os (poucos) estudos até então apresentados, contrária ao imediatismo de sua defesa por nossos políticos. Se por um lado a sociedade clamava por desburocratização e celeridade do maquinário público, é preciso critério para se aprovar o uso de qualquer substância de maneira indiscriminada pela população. Critério este minuciosamente implementado (e internacionalmente reconhecido) por parte da Anvisa.
Por mais ávidos que estejamos na busca pela cura do câncer, qualquer pesquisa, substância ou solução deve, necessariamente, se submeter a uma série de testes antes de ser comercializada como um medicamento. Exaustivos estudos pré-clinicos divididos em algumas fases precedem os testes em humanos em árduas, mas essenciais etapas para se observar eficiência e efeitos colaterais do potencial medicamento. Fica fácil entender a necessidade de tais testes através de estatística globais: de cada mil moléculas avaliadas, em média apenas uma será apta a seguir para testes em humanos e, muito dificilmente, em processo inferior a 10 anos, desde a descoberta da droga até sua comercialização, dada a rigorosidade dos testes necessários.
Negligenciar a exigência desses testes apoiando-se na urgência de uma solução para um mal tão presente na vida do brasileiro é no mínimo um flerte com a demagogia. Até agora, os poucos resultados encontrados não foram animadores, demonstrando pouco ou nenhum efeito sobre as células tumorais, com desempenho inferior ao de outras drogas anticâncer disponíveis há décadas. O embasamento da defesa e urgência de comercialização da pílula em sua inocuidade é superficial e frágil. Superficial dada, novamente, à escassez de estudos aprofundados e de longo prazo em humanos, análises de associação com outros medicamentos do cotidiano, tratamentos de comorbidades e etc. E frágil ao suscitar a possibilidade de estarmos direcionando nossas esperanças de cura a uma substância que parece não nos fazer nenhum mal, mas que talvez também não nos faça bem.
Relatos de cura invariavelmente nos entusiasmam, mas, infelizmente, não devem privar a substância de comprovação científica e, por ocasião da pouca representatividade populacional, sequer excluem a possibilidade de um efeito placebo. É preciso investigar mais. Para se entender um pouco mais a discussão no aspecto técnico, a pílula do câncer possui fosfoetanolamina como componente chave. De maneira simplificada, a fosfoetanolamina é uma substância que mimetiza um composto ja existente no organismo, capaz de identificar células cancerosas, iniciando um fenômeno de sinalização ao sistema imunológico, para que o mesmo as reconheça e remova. Obviamente promissor, certo? Mas a simplicidade acaba aqui. A fórmula patenteada não é pura.
Na realidade, pouco mais de 30% é fosfoetanolamina de fato. Há diversos outros compostos químicos em sua composição e foram encontradas variações enormes, inclusive no peso das cápsulas avaliadas. Além disso, eficiência e efeitos colaterais são altamente dependentes de dosagem. E aqui volta a residir um lapso conclusivo em toda esta questão. A comparação entre alguns estudos atuais e os do próprio grupo detentor da patente revela diferenças na ordem de cem vezes na concentração usada da substância. E a quantidade de fosfoetanolamina necessária para o efeito desejado foi milhares de vezes maior do que as de outras drogas anticâncer convencionais. Soma-se a isso à inexistência de estudos a respeito dos tipos de câncer contra os quais ela é eficiente, ou ainda da porcentagem de atuação, cura ou recidiva da doença.
Com inúmeros tipos de doença e consequentes tratamentos diferenciados, por mais tentador que seja acreditar numa cura universal, parece improvável que uma única substância seja capaz de curar todos os tipos de câncer. E singularidade parece ser uma palavra chave na luta contra a doença. Desde a manifestação dos inúmeros tipos de câncer, até o tratamento para cada um deles, sem esquecer da personalização do diagnóstico, cada tipo de câncer é único. Cabe aqui o parêntese importante que os testes e paineis genéticos têm desempenhado recentemente, auxiliando um número crescente de pessoas a realizarem o diagnóstico (ou prognóstico) precoce de câncer. Novos testes são constantemente disponibilizados e, invariavelmente, cada um é analisado de maneira singular. Cada caso tem sua particularidade, seja no diagnóstico ou no tratamento.
Por fim, uma substância com custo muito baixo, com (possível) atoxicidade e com potencial de cura do câncer merece ser tratada com toda urgência, mas, também, com a toda seriedade que o caso exige. Exatamente por isso, ela precisa se submeter a todos os testes necessários a qualquer candidato a medicamento. Muito além de opinião ou pressão pública, estamos invariavelmente em meio a uma torcida cientificamente imparcial para o sucesso de qualquer potencial de cura, inclusive a pílula do câncer.
Que sigamos sempre otimistas e abertos ao diálogo com a sociedade. Mas, também, preconizando o embasamento de decisões importantes em conhecimento e, exatamente por isso, confiando temas relevantes às esferas compententes. Que a frase de abertura seja regida por quem entende de política na esfera política. E por quem entende de saúde a respeito da pílula do câncer.
*Nicolas Marchon é formado em Microbiologia e Imunologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Possui mestrado em Microbiologia, com foco em Biologia Molecular, também pela UFRJ, além de um MBA em Gestão Empresarial pela FVG. Há mais de quatro anos na Thermo Fisher Scientific, o especialista atua há dois anos como Gerente de Desenvolvimento de Mercado para a América Latina. Além disso, acumula a função de diretor executivo na Associação Brasileira de Ciências da Vida (ABCV). Possui amplo conhecimento sobre sequenciamento, biotecnologia e ciências da vida em geral.
Tópicos deste conteúdo: ABCV, AMB, câncer, CFM, pílula do câncer, SBC, SBOC
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